Enquanto nos romances realistas as esposas infelizes (ou "aborrecidinhas", como no caso da Luísa, de "O Primo Basílio") caem em tentação e acabam por morrer física ou socialmente depois do adultério, único desfecho possível na lógica machista que sustenta a escrita, tal não é o caso em "Os Mistérios do Asfondelo". Pelo contrário, a heroína que, no início, ostenta todas as qualidades morais de uma esposa que "respeita os laços que a ligam" ao marido, torna-se adúltera por vontade do próprio, além de incentivada a tal pelo pai, o primeiro, por pensar no "bem da família", e o segundo, no futuro da filha, como deixam transparecer as suas "calculadas e pérfidas lamentações".
O leitor contemporâneo poderá reconhecer em "Os Mistérios do Asfondelo" todos os temas do género e as técnicas do romance-folhetim: amores contrariados porque os amantes pertencem a duas famílias inimigas, os Coculins e os Mascarenhas, a condizer com as novelas sentimentais; sósias perfeitas ? o que irá permitir uma maternidade de substituição entre as duas; peripécias mirabolantes; coincidências fatais; dissimulação (Ema não é uma enjeitada mas uma fidalga cuja identidade é enfim revelada no decorrer do enredo); sonhos premonitórios; amores à primeira vista; personagens caricaturais e grotescos, inclusive um padre devasso, a lembrar nas falas e atitudes quer a literatura satírica e libertina quer o romantismo gótico inglês.
"Os Mistérios do Asfondelo", tal como os outros romances de Arsénio de Chatenay, foi amplamente lido na sua época, mas logo votado a uma rasura crítica e à situação de "esgoto" pela imprensa contemporânea. Algum tempo depois da sua publicação, a janela que se abrira para a literatura licenciosa em Portugal, com a abolição do Tribunal do Santo Ofício, em 1821, fechar-se-ia durante a longa noite do Estado Novo. É por isso que nos parece urgente rever e reler a história da literatura erótica portuguesa, ou simplesmente escrevê-la, para tirar do olvido obras e autores que, como Chatenay, foram "queer avant la lettre".